segunda-feira, 20 de outubro de 2008

Patrimônio Desumanizado













"A especulação imobiliária quer, a qualquer custo social, preservar para elites”

Artigo publicado no Jornal “O Globo” – Opinião – Jan - 2008


A Floresta da Tijuca foi certificada pela Unesco como reserva da biosfera, ou seja, um patrimônio do mundo, do planeta. Infelizmente, os cariocas, especialmente os moradores do Alto da Boa Vista, acompanham há mais de dez anos as tentativas da prefeitura do Rio de Janeiro de Municipalizar o Parque Nacional da Tijuca, em vez fomentar a gestão compartilhada com o Ibama. Este comportamento gera um grave conflito de responsabilidade.

Recentemente, o Ministério Público Estadual, sem nem ao menos contactar as comunidades da região, acusou várias famílias de estarem cometendo crime ambiental e ameaçou removê-las. Se o Ministério Público as tivesse procurado para saber o que realmente estava acontecendo, antes de desqualificar e rotular essas pessoas como criminosas, certamente estaria voltando suas forças para o que realmente interessa, e não para gente humilde que reside legitimamente no pedacinho em que nasceram e aprenderam a amar.

O Alto da Boa Vista tem História e isso não pode ser ignorado por nenhuma administração, nem pela Justiça e nem pela mídia. Pelo contrário, deveriam saber que em uma comunidade chamada Açude reside uma única família há mais de 80 anos, sempre no mesmo espaço e em casas simples. Nas fotos da década de 40 vemos o sr. Francisco de Freitas, capataz e chefe da guarda florestal, que foi morar ali por também ser cantoneiro, ou seja, guardião das fronteiras da Floresta. Em todos esses anos as casas que foram construídas nunca ultrapassaram os limites do terreno que lhes foi confiado.

Outra comunidade que foi ameaçada de remoção é a Fazenda, que guarda uma casa grande e uma senzala, patrimônios que testemunham mais de 100 anos de história. Durante décadas, uma indústria de papel desativada nos anos 70 formou ali uma espécie de vila operária. A partir desta data, os moradores agregaram-se em uma associação e desenvolvem projetos ambientais. Os ecolimites são respeitados á risca. Além disso, convivem e cuidam do Parque das Furnas, espaço de rara importância geológica, que foi estudado pelo suíço Louis Agassiz em 1820. Foi lá também que residiram os governantes do Rio de Janeiro em 1711, durante a segunda invasão francesa, e onde foi construído um altar para a realização de missas pelo bispo refugiado. Por conta disso, o local foi batizado de Pedras Santas.

Todos os moradores do Alto da Boa Vista têm uma referência antiga e também uma história de descaso. O projeto Favela-Bairro, que é tido como modelo pela prefeitura, seria implementado na comunidade de Mata Machado. Ele previa a construção de creche, escola, estação de tratamento de esgoto, parques e praças, água encanada, entre outras melhorias. Apesar de o projeto ter sido iniciado oficialmente, com direito a placa (que ainda está no local) e tudo o mais, apenas o calçamento foi feito. O restante da obra não andou. Nunca ouve uma creche, escola nova ou praça. O esgoto é jogado diretamente no Rio Gávea Pequena e a água encanada nunca chegou às torneiras. O mesmo ocorre no projeto Bairrinho de Tijuaçu. Apesar de contar com uma estação de tratamento, na verdade, o que está sendo instalado pela prefeitura é um imenso tubo para jogar todo o esgoto da comunidade no Rio Cachoeira.

Por ironia do destino, no início deste ano o Conselho de Cidadania do Alto da Boa Vista, formado por essas comunidades, apresentou ao Ministério Público Estadual um dossiê com provas de omissão e de mau uso do dinheiro público e solicitou uma intervenção para obrigar a prefeitura a concluir as obras. Este documento foi parar nas mãos da promotora dra. Rosani Cunha, que sequer respondeu aos moradores e é a mesma que agora solicita as remoções.

Creio, dra Rosani, Ilmo. sr. prefeito Cesar Maia, vereadores, Ibama, universidades, que deveríamos estar, junto com toda a sociedade, inclusive com as comunidades do Alto da Boa Vista, em busca de uma política urgente e eficaz para a questão da moradia popular nas áreas de proteção ambiental, implementando a regularização fundiária nas comunidades, investindo em infra-estrutura básica, enfim, comprometidos com atitudes que incorporam as favelas à cidade, transformando o marginalizado em cidadão. Fazer diferente disso é rasgar a Constituição, o Estatuto das Cidades e a Lei Orgânica do Município.

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