domingo, 22 de junho de 2008

Parque da Catacumba - Cemitério da Cidadania



Sobre a crônica de Fernanda Torres para a Veja Rio de 11/06/08


" O que é a cidade, senão o seu povo? "
Willian Shakespear


Roberto Maggessi


"A remoção da favela da Catacumba foi uma tragédia." Essa é a opinião de Flávio Pinheiro, um dos melhores jornalista do país, editor-chefe do Estadão, idealizador e fundador da Veja Rio. E completa:
"A favela só é reconhecida na cidade com uma presença estatística, uma mancha na paisagem. Mas é muito mais do que isso. Ninguém sabe direito o que se passa nela e o que se passou. A memória é uma distinção de identidade, uma fonte de afetividade por mais dolorosa que possa ser (e não é só dolorosa, registre-se), uma singularidade. Há relatos comoventes nos registros de veteranos moradores nas fitas gravadas (e transcritas) do projeto de remoção. Memória de um crime social sem precedentes."
Segundo arquivos da Biblioteca Nacional, o terreno onde existia a Catacumba foi ocupado por uma chácara durante todo século 19. Sua antiga proprietária, a Baronesa da Lagoa, transferiu a posse das terras para seus escravos. Ali montaram um Quilombo. Por volta de 1925, o Estado dividiu a Chácara das Catacumbas em 32 lotes. Os primeiros barracos da futura favela começaram a ser erguidos ainda nos anos 30. Portanto, eram legítimos proprietários. Com o tempo, o ex-escravo foi virando novo pobre, e as terras da baronesa foram virando favela. O fato é que em 1970 o governo decidiu que os amigos da baronesa eram pobres demais para terem o privilégio da vista para a lagoa. Passou o rodo na área.( Limpeza Social ). Mandou o povo para casa do cassete e enfeitou aquele canto da lagoa com prédios de luxo e um grande "playground" arborizado e triste.

O plano de trocar as casas da lagoa pelas casas na casa do cassete parecia perfeito. Remover (como um tumor) os moradores e colocá-los em conjuntos habitacionais construídos na zona Oeste, que na época era um total vazio. Batizar com um nome bonito (Cidade de Deus) Golpe de mestre! Só faltou lembrar de um detalhe: Para viver, aquelas pessoas precisavam mais do que casas; precisavam de trabalho, o que obviamente não existia na área da casa do cassete – assim como também não existia infra-estrutura para que a região prosperasse, nem transporte para trazer os trabalhadores até seus antigos empregos na zona Sul. Aí o resultado: Cidade de Deus virou um dos maiores desastres sociais do Rio de Janeiro e um dos maiores quartéis do tráfico de drogas. Mas não importa. Para as Fernandas basta a distância, não a realidade.

Vejam o relato de D. Maria Dolores, 85 anos, sobre a Cidade de Deus da época:
"Não existia posto de saúde, iam todos para o Miguel Couto ( esqueceram de remover o hospital) e para o Hospital Cardoso Fontes. Várias vezes tive de sair de madrugada com o meu filho nas costas, pedindo carona para leva-lo para a Praça Seca. Foi duro naquela época. Antigamente, na cozinha, colocava o fogão não podia colocar a geladeira. Moravam na casa oito pessoas. Eu e meus filhos, mais dois de criação. O banheiro era um pequeno quadrado que se juntava à cozinha e, na frente, tinha uma pequena sala. A promessa sobre o local era grande, mas ao chegar vi que não era nada do que prometeram. Vivíamos no escuro e a rua era barro puro. Lá para baixo (perto da praça central da Cidade de Deus) era barro até o joelho. A distância para ir trabalhar quando vim morar na Cidade de Deus era muito grande. Simplesmente não tinha condução. Só passava, na época, o cata mendigo, como o pessoal chamava. Passava um de manhã e outro à noite, levando e recolhendo os moradores que trabalhavam."
Lembro de Pedro Mico, de Antônio Callado, malandro carioca, negro e bem humorado, protagonista da primeira peça teatral a utilizar uma favela como cenário, o Morro da Catacumba, em meados dos anos cinqüenta. A genialidade do autor e a sensibilidade para o assunto, qualidade rara nos que tentam escrever hoje, é revelante.
No texto, o autor faz um paralelo da vida do protagonista com a trajetória de Zumbi dos Palmares. Em certo momento da peça, a namorada de Pedro Mico, a prostituta Aparecida, sugere a ele que, assim como Zumbi, lidere uma invasão dos moradores do morro ao asfalto. A idéia seria tomar casas da classe média da Lagoa, bairro vizinho à favela, para antecipar-se a tentativa destes em destruir a favela. Quilombo urbano. Reação social.
Não vou sequer entrar nos detalhes macabros dos incêndios criminosos, da prisão de lideres comunitários na Ilha Grande, dos assassinatos, do pagamento de propina pelos especuladores imobiliários as autoridades, de Dona Sandra Cavalcante e seu conluio com as forças da ditadura, entre tantas barbaridades, dignas de crime contra a humanidade.
O pior, muito pior, é que esta estratégia criminosa não cessou. A campanha "Ilegal, e daí?" (que começou mostrando pequenas bandalhas da classe média, como ocupação de calçadas por restaurantes e acabou se concentrando no ataque as favelas) adota um viés legalista. Mas o problema não se resume à questão de obedecer ou não à lei. O buraco é muito mais embaixo. Elio Gaspari cita uma frase atribuída ao embaixador Otávio Dias Carneiro, que refaz a pontaria e recoloca a questão numa dimensão mais adequada: "Favela não é problema, favela é solução. Problema é falta de moradia."
Porém, as Fernandas compram o barulho dos especuladores que continuam achando que o pobre carioca não pode morar no Leme, no Horto ou no Alto da Boa Vista. Criaram a criminalização ambiental da pobreza, para legitimar a retirada das comunidades das áreas valorizadas e a abertura de caminhos para os condomínios de luxo. Nada mudou. Tiraram a Praia do Pinto para fazer a Selva de Pedra. Dentro da lógica. O rico pode invadir, desmatar, poluir, grilar, especular, vender...O pobre não pode morar. Legitimidade herdada do Brasil-Colônia com carimbo da ditadura.
Mas o medo do convívio com o diferente sempre fala mais alto. E, com uma retórica de que é necessário dar melhores condições de vida aos favelados, criaram-se os planos de remoção de favela que, como todos sabemos bem, não passam de uma política disfarçada de apartheid social. O resultado desta política está aí para quem tem sensibilidade para ver.Volto a Elio Gaspari para tentar convencer as Fernandas do retorno aos teatros. Em seu artigo "Favelofobia, um veneno social", ele ataca essa fobia da elite pela pobreza que a cerca. Diz o artigo com flagrante clareza e sabedoria: "Esses dois pedaços do Brasil precisam descobrir uma forma de convivência sem a premissa da eliminação do outro. Parece sonho, mas é melhor que pesadelo." E conclui com maestria. "O Brasil segregado, além de chato e inviável, não é uma fatalidade social. É apenas um anacronismo do atraso fantasiado de moderno. Entendeu agora, Fernanda?


Para abrilhantar sugiro:
Celebridades Palpiteiras – Furio Lonza
http://super.abril.uol.com.br/superarquivo/2004/conteudo_125202.shtml

Nenhum comentário: